quarta-feira, 15 de maio de 2013

Cultura e Rissóis


No café do Esteves, entre duas minis e um rissol, congeminava-se sobre a associação que se pretendia constituir. Carla e Diniz, alunos de Comunicação Social, tinham um projeto multimédia, havia que organizar, procurar fundos e parcerias, o Diogo faria o site, no Facebook se promoveriam contactos. Filomeno, antigo revisor do Diário Popular, aconselhava, o nome estava ainda em génese, mas seria sem fins lucrativos e produtora de eventos, a sede, provisória, na garagem do Rodrigo, em Massamá. Entre os fundadores, a Mena, cantora de jazz, com um curso de teatro, o Peres, adepto da permacultura, o Nicolau, letrista rapper e a Vanessa, webdesigner, e filha do Esteves do café. Naquele dia discutiam-se os objetivos:
-Pessoal, isto tem de ser uma coisa diferente, é preciso estimular o livre pensamento, a ruptura, fugir da programação das câmaras, viradas para o show-off e a reprodução de modelos estafados e para inglês ver. Já viram que quem  frequenta eventos se limita a observar sem espírito crítico? Onde é que está a mudança mental? É como o cão do Pavlov, acena-se com o osso, e o cão saliva! -comentou o Peres, enrolando o cigarro e pedindo uma mini -O problema está em mudar de osso!
-As pessoas estão adormecidas, amigo, agora com a crise, as prioridades são outras...- atalhou o Filomeno, veterano, passara pelo GAC nos anos setenta e era respeitado entre a malta nova –para se  fazer qualquer coisa diferente, é preciso apostar nas vantagens criativas, e sobretudo, convencer quem tem o poder de decisão a criar nichos, apoiar com espaços criativos. Já viram o dinheiro que vai para espaços que só metem  pessoas de vez em quando, para uns almoços? E os sítios ao abandono que há por aí, bem podiam ser usados por grupos, tipo associações residentes, fizeram isso em Inglaterra...E potenciar a ligação entre os criadores e os agentes económicos!
O Nicolau, mais descontraído, ensaiou um rap, contorcendo o corpo junto ao balcão e cantando:
“-A-malta não tem espaço o espaço não tem malta o que poderei eu fazer para os gajos convencer o dinheiro já não é há é que berrar bué! É preciso dar a volta! revolta! revolta!”-ia improvisando, mais tarde ensaiaria com o Mingas. Ao balcão, o Adriano do talho, com um olho no Esteves e outro na conversa, teve um aparte irónico:
-Se fossem mas era tomar banho…. esta malta quer é viver à sombra da bananeira, amigo Esteves, cantem mas é um fadinho, coisas que o povo goste! -comentou, pedindo um rissol para o caminho.
-E depois é sempre a mesma coisa, só dificuldades! Se se organiza uma festa para angariação de fundos, vem a GNR e fecha, multas para cima do pessoal, há sempre uns anónimos a chamar por causa do ruído ou da licença. Na rua, nem pensar, os bancos não apoiam  a cultura, é mais fácil dar um milhão ao Mourinho…-rematava o Diniz. – Portugal está muito mal frequentado...
Geração recibo verde, outros nem verde sequer, tentavam dar a volta, a princípio parecera fácil, agora eram só dificuldades, apesar da  associação na hora, até para o telemóvel era preciso dinheiro, a Câmara cortava-se, alegando cortes orçamentais, e o centro de emprego, que antes apoiara alguns estágios, esquivava-se também.
-Então e a hipótese dum espaço no Museu Berardo? Aquilo agora está meio parado…- ainda sugeriu o Diniz -Aqui há tempos li que na Finlândia apoiavam uma espécie de laboratórios de eventos, tipo cluster, porque não uma coisa parecida, com tanto edifício industrial em ruínas, uma pintura e eletricidade, e já era um ponto de partida...
-Já tentámos, mas é tudo para alugar -atalhou o Filomeno, já se informara - sabem como é: no money, no funny.
A noite ia chegando, as minis acumulando-se, só a página no Facebook avançava. Amigos prometiam um concerto para recolha de fundos, colunas emprestadas, umas grades à consignação, havia que tentar, o Filomeno tinha um amigo no LX Factory que emprestaria audiovisuais, a Mena e a Vanessa poriam à venda artesanato e sangria, fizera sucesso uma vez.
-Sintra está morta, rapazes - interveio o Esteves, a filha no grupo obrigava-o a opinar - Quem tem dinheiro, quer é ir a sítios para ver e ser visto, coisas que desviem a cabeça dos problemas, um leitão em Negrais, futebol - elencou, conformado - o que vocês fazem, vão ver, vai ser sempre para os mesmos dez, e é se não se chatearem uns com os outros até lá! -sentenciou, repondo o balcão com guardanapos, um grupo na mesa do canto googlava no portátil. Na televisão anunciava-se  um casting para um programa de talentos.
-Olhem, estão a ver? -rematou o Diniz - o único caminho que se oferece  é este, o do sucesso sem trabalho para  cinco minutos de fama. O resto está minado. O pessoal não está anestesiado, está é em coma! Mas como dizia o outro, só é derrotado quem desiste de lutar!
O Filomeno, velho compagnon de route de muitas utopias concordou, repescando uma máxima dos seus tempos de anarca:
-É assim mesmo! O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo! -rematou, seguido dum brinde com as minis, no portátil lá foram construindo o site, na net pelo menos haveriam de existir.

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