Praia Grande, sábado à tarde. Mirones a ver o mar e ser
vistos, um passeio pelo areal, a Galé e o Angra servindo imperiais e gambas,
com vista para o infinito. Na esplanada, a Rogério Pedreira apenas uma notícia
interessou, discreta num matutino, o suicídio perto de Cascais de um homem a
quem um cancro terminal precipitara de um quinto andar, enquanto na sala um CD
reproduzia o Requiem de Mozart, fotografias de família cobriam o chão. Rogério,
clínico no IPO, lembrava-se daquela cara, o sr. Gustavo, seu doente, bancário
reformado, durante uns meses confiante nas consultas, os tratamentos faziam
temer uma ligeira regressão, não o via porém há mais de um mês. A notícia era
vaga, ilustrada por uma foto do falecido, aí com dez anos menos, a esposa
estava inconsolável. Esta era a parte da notícia que para ele não batia certo.
O Gustavo sempre se dissera viúvo, lembrava-se mesmo de o ouvir dizer que
jantava numa leitaria, pois não sabia cozinhar, teria casado entretanto?
Ao chegar a casa, buscou o bloco-notas, e lá descobriu os
dados do falecido: Gustavo Silvestre, 57 anos, de Soure, morador em Queluz.
Viúvo, um filho. Pólipos no intestino grosso e sangue nas fezes. Metastizadas,
foram-lhe detectadas células cancerígenas nos gânglios linfáticos, já muito
disseminadas pelo fígado. Um número de telefone deixou-o hesitante: telefonaria
a dar os pêsames, e assim saber quem seria a esposa de que os jornais falavam,
ou passaria adiante, médico e morte são rivais, mas também parceiros. Ligou.
Após alguns segundos, uma voz feminina, já madura, atendeu do outro lado:
-Está lá?
-Sim? Boa tarde minha
senhora, é da família do senhor Gustavo?
-Sou a viúva…
-Sou o dr. Rogério
Pedreira, e até há pouco fui seu médico, no IPO. Vinha apresentar as minhas
condolências. O caso dele era sério, mas lamento que tenha desistido, ainda
havia esperança numa vida com dignidade, pelo menos…
Do outro lado, após breve hesitação, enigmática, a viúva
respondeu:
-Muito obrigado senhor
doutor. Mas a doença que o matou foi outra…
-Outra? Como assim?
-Senhor doutor, posso
passar no IPO um dia destes? Gostava que soubesse a verdade, era um alívio para
mim, também….
-Com certeza, dona…
-Sara. Sara Geraldes.
-Apareça então
segunda-feira, D. Sara, dou consulta a partir das três, passe um pouco antes.
Na sala de espera, no IPO, uma senhora com menos de quarenta
anos, fato azul e óculos escuros, aguardava em silêncio. Antes de a receber,
Rogério mirou-a ao longe atentamente, os médicos desvendam os segredos do corpo
mas muitas vezes desconhecem os segredos da mente, cada doente com um passado
em busca de futuro, ameaçado se for no IPO. Mandou entrar. A senhora
cumprimentou, discreta mas afável.
-Pois mais uma vez os
meus sentimentos, minha senhora. O seu marido era um doente abnegado, e se quer
que lhe diga, até persistente, fiquei admirado com este desfecho bastante
triste. E já agora, foi para mim uma surpresa saber da sua existência, ele
sempre me disse ser viúvo…
-E era, senhor doutor.
Vou-lhe contar tudo, e talvez entenda o que se passou…
-Faz favor...
A viúva, de aspecto bem tratado, quase da mesma idade do
médico, desfiou a história lentamente:
-O Gustavo e eu tivemos
uma relação durante mais de dez anos. Fomos colegas no banco, e, discretamente,
mantinha com ele encontros em segredo, ele gostava da mulher, e nunca quis
dar-lhe esse desgosto. Tinha uma vida dupla, se assim posso explicar…
-Compreendo.
-Depois da morte da
mulher, adoeceu, como o doutor sabe, e de livre vontade entendeu que devíamos
casar, fazia questão. Eu hesitei, o filho nada sabia, nem de mim nem da doença,
e podia não entender. E não entendeu. No dia do casamento, o Gustavo telefonou-lhe
a contar, mas ele ficou possesso e disse que nos matava, que era uma afronta à
memória da mãe, e que eu era uma rameira, enfim…
-Caso complicado, estou
a ver…
-De qualquer modo,
casámos. Há três semanas, pelo registo. Ele sentia a doença avançar, mas vou
recordar para sempre estas três semanas de felicidade, apesar de viver
amargurado por causa do filho. Há uma semana, ele foi lá a casa, embriagado, e
disse-lhe que era um pulha e sem vergonha, e que quando morresse o mandaria
para a vala comum, e cuspiria em cima. Foi muito chocante, até lhe disse que o
cancro ainda era pouco castigo.
-As famílias são uma
coisa complicada…-comentou,
ele próprio com o casamento na corda bamba.
-A discussão deixou-o
muito abalado, o filho proibiu-o até de ver o neto. Nessa noite, foi deitar-se,
e não pregou olho, ficou sentado no sofá a ouvir música e a beber, apoquentado.
Até que na quarta-feira, levantou-se para ir à casa de banho, e já só vi as
cortinas a esvoaçar e um ruído de travagem na rua.
O cancro flagelando o corpo, o filho flagelando a alma,
despedia-se deixando uma carta para Sara, saía de jogo antes que soasse o apito
para o fim. Rogério acompanhou a viúva à porta e voltou para os seus doentes,
terminais uns, famintos de vida outros, sem ter para quem viver, o dossier de
Gustavo de vez no arquivo morto.
No sábado seguinte, Rogério voltou à
Praia Grande. Jovens surfistas cortavam as ondas, doses de amêijoa passavam
para a mesa do fundo, Rogério, retomando a rotina e levantando os olhos do
mórbido matutino das desgraças, por momentos pareceu ver o Gustavo ao fundo, na
falésia, mirando o horizonte e ouvindo o Requiem
de Mozart. RIP.
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