O Rolls-Royce deteve-se no Rodízio, Gloria Swanson, antiga diva de
Hollywood, chegava para mais uma temporada em Portugal. Passara dos setenta,
mas mantinha uma pose altiva, arrogante e desafiadora. Pacientemente, o
motorista descarregou as inúmeras malas e caixas com chapéus. Magra e com
rugas, o brilho fenecia para a rival de Mary Pickford e Pola Negri. Brilhara
como Norma Desmond no Crepúsculo dos Deuses, que lhe valera um Oscar, o
papel de atriz decadente para si criado por Billy Wilder encaixava agora como
uma luva, cruel vingança do tempo.
A casa do Rodízio, perto da Praia
Grande, era um refúgio estival e tranquilo, mais que nunca, agora. O tempo da Paramount passara, e só esporadicamente a
chamavam para séries. Vinha a Portugal regularmente, o pequeno chalé,
suave, contrastava com a luxuosa mansão de Beverly Hills, osmose de mar e
serra, poiso de exílio para as rugas delatoras e o cabelo tingido, exorcizando
a imagem que cruel o espelho impunha pela manhã.
Portugal, nesse dealbar de 1965, era
um rincão exótico, mais calmo que Saint -Tropez ou Acapulco. Steve, o
motorista, passava dos sessenta, as parecenças com Eric von Stroheim, que com
ela contracenara no Crepúsculo dos Deuses prolongavam fora do ecrã uma
cumplicidade que fazia Glória refém de Norma e Norma a emulação de Glória. Um bacardi
à chegada saudou a brisa da Praia Grande, prestes a inaugurar umas piscinas que
por certo trariam campistas ruidosos e crianças irritantes.
Os fox terrier, saltando
enervados do Rolls, ladraram a um gato indígena, enquanto Mabel e Fiona
prepararam os quartos para três semanas de descanso. Um salmão com alcaparras e
um copo de beaujolais, saciaram o corpo, refém de antidepressivos.
Pela casa jaziam recordações de uma vida: uma foto com Mack Sennett em Los
Angeles, em filmagens para a Keystone, uma carta de Chaplin convidando-a para
um casting, um vestido que usara em Don’t Change Your Husband,
de Cecil B. de Mille. O vestido trouxe-lhe à memória o dia em que quase
fora devorada por um leão, para gáudio deste. Sublime, a casa de banho convidava
a banhos de espuma, quem sabe se bebendo champanhe pelo sapato, mítico fetiche
incensado pelo mainstream.
Na manhã seguinte deu um passeio
pela Praia Grande, percorrendo o vasto areal, Fiona levou os fox enquanto Steve esperava no carro.
Colocou um lenço de seda verde que lhe escondia o rosto, óculos escuros
garrafais e batôn vivo, queria aspirar o iodo e o sol ameno. O Fortunato,
banheiro tostado pelo sol de muitos verões, cumprimentou-a, reverente, já há
muito conhecia a madame, a quem
regularmente levava peixe fresco. Era americana, e logo, com toda a certeza, rica.
Nunca vira nenhum dos seus filmes, a maioria mudos, mas a quem perguntava,
falava como se fosse íntimo, eram seus os robalos que comia, afinal. Nada sabia
dos tempos em que conquistara a América, para inveja de Lillian Gish e Mae
West, todas agora no ocaso da carreira e assassinadas pelo sonoro,
aviltantemente relegadas para papéis de avós ou matriarcas nos seriados da
tarde.
Voltava pelo paredão, com o Hotel
das Arribas quase pronto, quando um jovem a abordou, Bernardo, vizinho no
Banzão. Se não era a Glória Swanson, o jardineiro dela era o mesmo dos pais, o
David. Vira várias vezes o Crepúsculo dos Deuses, e exultava com o seu
trabalho. Glória, inicialmente desinteressada, acabou achando graça ao jovem,
mendigando um autógrafo. Segurando o papel, desenhou um grande G, de Glória.
Agradecido e eufórico, preparava-se para partir na velha 4L vermelha, quando
surpreendentemente ela lhe pediu boleia para o Rodízio. Bernardo ruborizou, o
velho carro cheio de revistas e um rádio a pilhas não estava à altura.
Mas ela achou graça, e mandou Steve e Fiona seguirem atrás do Rolls-Royce de lata, em que o rato
virava cocheiro, como na história.
Chegados, mandou-o entrar, a
situação lembrou-a de Escravizada, em que fazia Tessie McGuire, uma
empregada de balcão em apuros no metro de Nova Iorque, namorada da América,
ainda. Bernardo sentiu-se invasor num cenário proibido, onde a seu lado, a
divina Glória representava um derradeiro papel. O seu.
Pondo num velho gramofone um vinil
de Irving Berlin, acendeu um cigarro, serviu um martini rosso e
brindou com Bernardo, em silêncio, como se fosse um ritual. Erguendo o copo,
virou-se para a parede onde pontificava o seu retrato a óleo, altiva e
dominadora, e recuou para a Glória que Los Angeles aclamara em carro
aberto, e paixão de Valentino. Sentiu-se transportada para o set, e, fitando o jovem, soltou as
diletantes palavras de Gone with the
Wind: -Frankly, my dear, i don’t give a damn! -bebendo o martini
de um trago só.
Sete anos depois, em Lisboa,
Bernardo estreava o seu primeiro filme, com um subsídio arrancado a ferros,
após seis meses de rodagem intermitente e falta de verbas. Na noite
da estreia, rodeado de fiéis dos Cahiers du Cinema e da fauna das premiéres,
chegou um telegrama desejando boa sorte e sucesso para o seu trabalho. Em
letras garrafais, estava desenhado um G.
Quem é este Bernardo? Qual é o filme?
ResponderEliminarA Casa do Rodízio ainda existe no local?