sábado, 12 de janeiro de 2013

Um baile em Seteais



Ás ordens de Gildemeester, a música enfim arrancou. O velho cônsul, fortuna feita com o negócio de diamantes, inaugurava com brilho palacete em Seteais, fronteiro ao terreiro onde por vezes a artilharia se aboletava, e para tanto, convidara a aristocracia e todo o corpo diplomático. Representante da Holanda, há muito vivendo em Portugal, casara com uma senhora bem mais nova, a quem para a brilhante festa ofertou nesse dia um reluzente colar de diamantes, lapidados de propósito em Antuérpia.

Os convidados, creme de la creme, rodopiavam entre  canapés e  bebidas, lautamente servidos por criados vestidos a rigor: Lafitte, ministro da França, os marqueses de Sória, D.Diogo, marquês de Marialva e os filhos, Henriqueta e Pedro, Madame Street Arriaga, dona do Ramalhão, pares do reino e mais autoridades. O inglês Beckford, que chegara a Portugal esse ano, com reputação de sodomita, chamava a atenção das senhoras, divididas entre o espanto pela sua distinção e o choque da fama dos seus alegados pecados. Contudo, o dinheiro tudo apaga, e Beckford exalava distinção, caíra nas graças dos Marialvas e era visita frequente da sua casa em S.Pedro.

André de Gildemeester ia mostrando aos convidados a  deslumbrante vista sobre a várzea, com o mar azul em fundo e o convento da Penha no seu presépio. As pinturas e lustres eram recentes, a ânsia de ostentar fortuna e exibir a  esbelta esposa, decidiram-no a uma festa que ficasse perene na memória. O ministro da Inglaterra, Walpole, sabendo da presença de Beckford, declinara o convite, constrangido, melhor estava a ser a aceitação em Sintra do filho do mayor de Londres, que na corte inglesa, dividido  entre um casamento de conveniência e os amores pecaminosos com um  tal William Courtenay. Calculista, Marialva comentava com o Duque de Lafões a vontade de ver o jovem Beckford, viúvo e jovem, recomeçar a vida com Henriqueta, quinze prendados anos dedicados aos lavores e ao piano. Beckford, contudo, mostrava mais inclinação pelo irmão, o esbelto Pedro, de caracóis louros e corpo alvo, já cadete, e sua lasciva presa  nos salões dos Marialvas. Este, que trouxera à recepção um cadete amigo, Álvaro de Albuquerque, escapava-lhe  sempre que podia, francamente incomodado.

Aberto o baile, um Gildemeester calvo e gordo rodopiou com a vistosa  esposa no salão grande, deslumbrante num vestido debruado a seda e com o colar de diamantes reluzindo, logo seguido dos mais jovens, desafiando as tímidas donzelas para um minuete. A corte de Lisboa era frugal, e a rainha austera, morando até há pouco na real barraca que seu pai erguera na Ajuda, pelo que tão invulgar recepção era o acontecimento do ano. Beckford, cínico e provocador, comentou mesmo com Gildemeester que rivalizava com o melhor que vira em Paris, o que fez o velho cônsul, excitado,  reforçar os copos de champanhe.

Festa em alta, fez o anfitrião um súbito sinal à orquestra para um intervalo, erguendo a taça de cristal meio cheia. Já ruborizado, iniciava um discurso num português arrevesado, quando o grosso candelabro ao centro do salão tombou, espalhando o pânico na sala, para incómodo do cônsul, que de imediato mandou acender velas e renovar as bebidas. Já reposta a ordem, ordenava que  a música continuasse, quando a consulesa largou um grito, entre  o espanto e  o pânico. O colar de diamantes sumira, na confusão da queda do candelabro.

Ruído geral. Quem entre distintos aristocratas e gente de bem teria a ousadia de tal acto, próprio de salteadores? Muitos roubavam os incautos, nas azinhagas de Sintra, mas ali, só estava gente de linhagem….

Os criados entreolharam-se, enquanto Beckford escarnecia com Marialva e ruborescido Gildmeester procurava aparentar normalidade. Não era nada, estaria por certo caído, no dia seguinte o encontrariam, disse, entre um sorriso encenado e a apreensão com o sumiço da valiosa jóia. A festa continuou, e já noite dentro se dispersou a parafernália, saindo todos a comentar o caso. O colar, contudo, apesar de procurado, não mais apareceu.

Gildemeester ainda morou oito anos em Seteais, tendo Marialva adquirido o palácio após a sua morte. Beckford regressou a Londres e, contrariada, Henriqueta acabou casando com o velho Duque de Lafões.

Vinte e sete anos depois, D.Pedro Vito, o jovem dos caracóis louros, agora sexto marquês de Marialva, chegava a Paris como embaixador na corte de Luís  XVIII. Levava consigo o segredo duma aventura escaldante com a princesa Carlota Joaquina, há anos ausente no Brasil. O filho desta, Miguel, nascera seis meses depois de um caso tórrido entre ambos, e o Príncipe Regente confessara ao seu físico há mais de dois anos não visitar os aposentos da princesa, quando esta engravidou. Desempenhado da função, por lá ficou, adquirindo para si e para um velho amigo, o coronel Álvaro de Albuquerque, um imponente palácio em Besançon. O  Reino ocupado e a Corte no Brasil desaconselhavam um regresso apressado a Lisboa.

Um valioso colar de diamantes, cobiça dos joalheiros, boquiabertos com peça de tal quilate, pagou a tranquila e abastada vida que desde  então levou até ao final dos seus dias…

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