Ás ordens de Gildemeester, a música enfim arrancou. O velho cônsul, fortuna feita com o negócio de diamantes, inaugurava com
brilho palacete em Seteais, fronteiro ao terreiro onde por vezes a artilharia se
aboletava, e para tanto, convidara a aristocracia e todo o corpo diplomático.
Representante da Holanda, há muito vivendo em Portugal, casara com uma senhora
bem mais nova, a quem para a brilhante festa ofertou nesse dia um reluzente colar
de diamantes, lapidados de propósito em Antuérpia.
Os convidados, creme de la
creme, rodopiavam entre canapés e bebidas, lautamente servidos
por criados vestidos a rigor: Lafitte, ministro da França, os marqueses de Sória,
D.Diogo, marquês de Marialva e os filhos, Henriqueta e Pedro, Madame Street
Arriaga, dona do Ramalhão, pares do reino e mais autoridades. O inglês Beckford, que
chegara a Portugal esse ano, com reputação de sodomita, chamava a atenção das
senhoras, divididas entre o espanto pela sua distinção e o choque da fama dos seus
alegados pecados. Contudo, o dinheiro tudo apaga, e Beckford exalava distinção,
caíra nas graças dos Marialvas e era visita frequente da sua casa em S.Pedro.
André de Gildemeester ia mostrando
aos convidados a deslumbrante vista sobre a várzea, com o mar azul em fundo e
o convento da Penha no seu presépio. As pinturas e lustres eram recentes, a
ânsia de ostentar fortuna e exibir a esbelta esposa, decidiram-no a uma festa que
ficasse perene na memória. O ministro da Inglaterra, Walpole, sabendo da presença de
Beckford, declinara o convite, constrangido, melhor estava a ser a aceitação em
Sintra do filho do mayor de Londres, que na corte inglesa,
dividido entre um casamento de conveniência e os amores pecaminosos com um tal
William Courtenay. Calculista, Marialva comentava com o Duque de Lafões a
vontade de ver o jovem Beckford, viúvo e jovem, recomeçar a vida com
Henriqueta, quinze prendados anos dedicados aos lavores e ao piano. Beckford,
contudo, mostrava mais inclinação pelo irmão, o esbelto Pedro, de caracóis louros
e corpo alvo, já cadete, e sua lasciva presa nos salões dos Marialvas.
Este, que trouxera à recepção um cadete amigo, Álvaro de Albuquerque,
escapava-lhe sempre que podia, francamente incomodado.
Aberto o baile, um Gildemeester
calvo e gordo rodopiou com a vistosa esposa no salão grande,
deslumbrante num vestido debruado a seda e com o colar de diamantes reluzindo,
logo seguido dos mais jovens, desafiando as tímidas donzelas para um minuete. A
corte de Lisboa era frugal, e a rainha austera, morando até há pouco na real
barraca que seu pai erguera na Ajuda, pelo que tão invulgar recepção era o acontecimento do
ano. Beckford, cínico e provocador, comentou mesmo com Gildemeester que
rivalizava com o melhor que vira em Paris, o que fez o velho cônsul, excitado, reforçar os copos de
champanhe.
Festa em alta, fez o anfitrião um
súbito sinal à orquestra para um intervalo, erguendo a taça de cristal meio
cheia. Já ruborizado, iniciava um discurso num português arrevesado, quando o grosso
candelabro ao centro do salão tombou, espalhando o pânico na sala, para incómodo
do cônsul, que de imediato mandou acender velas e renovar as bebidas. Já
reposta a ordem, ordenava que a música continuasse, quando a consulesa largou um grito,
entre o espanto e o pânico. O colar de diamantes sumira, na
confusão da queda do candelabro.
Ruído geral. Quem entre distintos
aristocratas e gente de bem teria a ousadia de tal acto, próprio de
salteadores? Muitos roubavam os incautos, nas azinhagas de Sintra, mas ali, só estava gente
de linhagem….
Os criados entreolharam-se,
enquanto Beckford escarnecia com Marialva e ruborescido Gildmeester procurava
aparentar normalidade. Não era nada, estaria por certo caído, no dia seguinte o
encontrariam, disse, entre um sorriso encenado e a apreensão com o sumiço da valiosa jóia. A festa continuou, e já noite dentro se dispersou a parafernália, saindo todos
a comentar o caso. O colar, contudo, apesar de procurado, não mais apareceu.
Gildemeester ainda morou oito anos
em Seteais, tendo Marialva adquirido o palácio após a sua morte. Beckford
regressou a Londres e, contrariada, Henriqueta acabou casando com o velho Duque
de Lafões.
Vinte e sete anos depois, D.Pedro
Vito, o jovem dos caracóis louros, agora sexto marquês de Marialva, chegava a
Paris como embaixador na corte de Luís XVIII. Levava consigo o segredo duma
aventura escaldante com a princesa Carlota Joaquina, há anos ausente no Brasil. O
filho desta, Miguel, nascera seis meses depois de um caso tórrido entre ambos, e o Príncipe
Regente confessara ao seu físico há mais de dois anos não visitar os
aposentos da princesa, quando esta engravidou. Desempenhado da função, por lá
ficou, adquirindo para si e para um velho amigo, o coronel Álvaro de
Albuquerque, um imponente palácio em Besançon. O Reino ocupado e a Corte
no Brasil desaconselhavam um regresso apressado a Lisboa.
Um valioso colar de diamantes,
cobiça dos joalheiros, boquiabertos com peça de tal quilate, pagou a tranquila
e abastada vida que desde então levou até ao final dos seus dias…
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