Tomada Ushbuna, após dezassete semanas
de cerco, os habitantes de Cintra fizeram oferta do seu castelo, e entregaram-se ao
rei. Rendidas pois as fortalezas que nas redondezas estavam ligadas à
cidade, foi celebrado Afonso Henriques como novo rei, e abateu-se o pavor
sobre os mouros aos quais ia chegando a notícia destes sucessos, tendo,
para piorar as coisas, caído entre eles a peste. Por todo o lado
jaziam cadáveres, à mercê de feras e aves, trazendo os campónios assustados.
Afonso Henriques, chegado o Natal
de 1147, achou por bem apossar-se de Cintra, tendo-se posto a caminho com uma
guarnição, que incluía Henry Glanvill e Simon de Dover, dois cruzados que com
ele haviam estado na tomada de Lisboa. Pêro Pais, seu porta-bandeira, entendido na língua
dos mouros, acompanhou-os, como tradutor.
Logo nas imediações da vila,
Xintara, assim a designavam os mouros, algumas madrassas antes
dedicadas à exaltação da fatah, estavam abandonadas à chegada dos
novos senhores, os infiéis adoradores da Cruz. Uma delas, explicou Pêro Pais,
fora mesmo o refúgio de Ibn Becre Mauani Al-Shintari, eremita da serra da
Lua e venerado lutador contra o conde Henrique, seu pai. Desse local controlavam
a judiaria de S. Martinho. Na medina, antes pejada de ruidosos mercadores,
reinava agora o silêncio, todos recolhidos em casa e com receio das pilhagens.
Afonso Henriques mirou o castelo, enevoado naquela manhã de Dezembro, e com a
comitiva subiu a sinuosa serra, uma escolta adiantada garantia contra alguma
cimitarra traiçoeira que se atravessasse ao caminho. Até aí dependente da
dinastia aftácida de Badajoz, Xintara era um ponto elevado,
dali se dominando o mar e os campos até Lisboa e Palmela. Eram umas boas
centenas de metros desde a medina até à porta de entrada, os mouros chamavam ao
local qala’â, calaferrim, por ficar num planalto, segundo o incansável
Pêro, a Henry Glanvill recordava a Bretanha natal. Contudo, em vez de ruidosos
habitantes e soldados aguerridos, apenas o silêncio, cortante e perturbador, como
se de uma cidade fantasma se tratasse. Afonso Henriques e seus homens entraram,
de espada em riste, havia algumas construções, e uma égua solitária junto a um
poço. A um canto, dois mouros idosos, um magro e grisalho e outro cego,
segurando uma vara de vime e sentado junto à égua. O magro dirigiu-se ao novo
senhor, meneando a cabeça:
-Salam’aleq, Ibn Enrik-
saudou, dirigindo-se à comitiva aos cavaleiros do manto branco.
-Quem és, e onde está a
guarnição deste alcácer? -interrogou na língua dos mouros, Pêro
Pais, a mando do rei. Onde estão os refik, guardiães da rábida de Xintara?
-Nada sei, nobres cavaleiros.
Meu nome é Ahmed e apenas me mandaram que entregasse a chave ao conquistador de
Ushbuna, assim o faço - e estendeu uma chave em bronze, símbolo do castelo
mouro, que já antes se havia rendido.
Afonso Henriques apeou-se perto da mesquita, agora silenciosa e acercou-se da muralha,
apontando para uma povoação ao longe, para os lados do mar, perguntando como se chamava:
-Al-Mesjide! -respondeu o
sarraceno, reverente.
A ausência de gente no
castelo intrigou o rei, que após inspecção ao local descobriu disfarçada, perto
da torre albarrã, uma entrada. Os mouros ficaram assustados, tentando
desviar a atenção. Afonso percebeu que lhe escondiam algo, e mandou cortar a
vegetação. Era um túnel, cuja descoberta deixou o mouro cego apreensivo. Precedido de dois
cavaleiros e com os mouros guardados por um escudeiro, entraram todos, munidos de
archotes. A montanha parecia oca, e o caminho enorme. Andaram mais de uma hora,
até saírem perto dum povoado chamado Al-Gueirum. A serra era perfurada,
cheia de túneis, escavada para fugas estratégicas e entrada de reforços. Afonso
Henriques gabou o estratagema, por ali haviam sumido todos antes, por certo.
Voltando ao castelo, a
meio do percurso depararam com uma cripta dissimulada. Aí o mouro cego, de nome Muhamad,
pediu que não avançassem:
-Senhor de Ushbuna, peço-te,
detém-te ante os sagrados lugares!
-Sagrados? Só Nosso Senhor
Jesus Cristo é sagrado, infiel. Sigam-me!
Ante o protesto imperceptível dos mouros,
Afonso, Pêro e Henry adentraram-se no local. O mouro grisalho explicou então:
-Aqui jazem os sagrados
despojos do mullah de Xintara. Mas não deveis avançar mais, sob pena de graves
maldições: hordas de demónios djins guardam o templo de ak-sherim, onde se
chega pelo sura-loka, depois de 44 degraus. Ao fundo há um lago, e depois…-aí
o mouro calou-se, como se a revelação o deitasse a perder.
-Depois?....-Afonso
Henriques ainda esperou que concluísse, mas preferiu não saber, havia que
contar com os mouros para arrotear as terras e pagar as dízimas, conquistada Xintara, cavaleiros cristãos
imporiam a autoridade a partir do Arrabalde. Voltou ao castelo, e rumou para
Palmela. O túnel do castelo mouro fechou-se então. Em zona interdita, depois
dum lago, ficava a catedral universal do mundo de Badagas, onde Soleiman
Ha Shari, filho dum vali de Xintara, duzentos anos antes edificara um
altar junto ao túmulo de seu pai, o sábio Soleiman. Na pedra, uma inscrição
há muito oculta: Allah há beri (*Realização de Deus). Era o secreto
templo dos mouros de Sintra.
Os Senhores da Cruz poupavam os
Cavaleiros do Crescente, e estes, nos meses seguintes, lentamente voltaram à vila
pelos túneis da montanha oca. Com a medina pacificada, de novo colorida e
ruidosa, mouros e cavaleiros em paz viveriam junto ao Monte da Lua nos trezentos anos seguintes.
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