A televisão estava ligada, num preto e branco sumido passava pela enésima vez O Pátio das Cantigas, a cena do candeeiro, apesar de vista e revista, era sempre impagável. Actores histriónicos, dos que já não há mais, pensou Aníbal, concentrado no novo livro e dedilhando o portátil em busca das palavras certas. Escrever é ingrato e forçoso se torna ignorar os leitores, invasores sem licença profanando as palavras escritas, interiorizou, pensando uma coisa e escrevendo outra. Aníbal passava problemas pessoais: a Luísa deixara-o, o editor atrasava-se no pagamento, carrancudo, o médico torcera o nariz aos exames, o fígado estava uma lástima. Despegado, desde que houvesse para o gin, o talento fluiria à velocidade dum gole, pujante orgasmo da palavra correndo solta até que, saciado e vingador, o dedo furioso se cansasse de martelar o te.lado.
A cena do candeeiro transportou-o para a sua própria realidade. Como o Vasco Santana do filme, sentia a invasiva solidão. Amigos de sempre haviam-se afastado, vegetava emocionalmente, não arengando a um candeeiro num pátio esconso e silencioso, antes náufrago entre palavras soltas, escrevendo, vingador, vomitando o desprezo em letras que talvez alguém lesse, quanto mais não fosse, o Semedo da editora.
Cansado da escrita, deu um pulo ao Legendary para um gin, intervalo para matutar no romance. Fartara-se do personagem principal, queria matá-lo, mas ainda só tinha trinta páginas, era cedo, como ele, alcoólico perdido, nada de autobiográfico, claro, embora nada os separasse a não ser o facto de o personagem praticar vudu, ao matá-lo, matar-se-ia a si, o resto do livro seria em flashback, talvez os leitores no fim tivessem saudades do herói.
Patrícia era uma jovem universitária. Dezanove anos, um livro de Philip Roth a meio, sempre se interessara por Aníbal, um professor já dele lhe falara como um grande talento. Ao vivo, próximo e ao mesmo tempo distante, observou-o de longe no balcão do Legendary, macilento e emborcando o gin como um rito, em nada condizia com o pujante Aníbal Gralheiro a quem a crítica saudava como grande talento. Avesso à vida mundana, dava poucas entrevistas, o editor até concordava, o epíteto de escritor maldito era bom para o marketing, funcionara com o Jorge de Sena e o Lobo Antunes. Já voltava para casa, onde apenas estava o Troika, o gato que recolhera da rua e o teclado, sedento de geniais palavras ou expectante por um súbito delete, quando Patrícia decidiu abordá-lo, um sorriso jovial e esfíngico, deixou-o interessado:
-Você é o Aníbal Gralheiro, não é? O meu professor de Literatura já me falou em si! –cumprimentou, o Philip Roth debaixo do braço deixava entender ser instruída. Aníbal, surpreso, esboçou um riso artificial e ensaiou um esgar, mais uma idiota embevecida pela sua obra, desde que o Vargas no Jornal Literário o chamara de “genial” passara a best-seller no Continente:
-Sim? Também gostou da “Profanação em Líquido”?
-Não! -ripostou, segura e mudando de expressão. -Acho que você é um frustrado, sem sensibilidade para entender os outros. Acho até que escreve sobre coisas que não conhece. É uma fraude, um personagem à procura do reconhecimento do autor!
Aníbal embasbacou. Como se atrevia!. Nunca devia ter lido nada seu, senão sinopses idiotas, ou resumos no Google, que percebia ela de escrita. Simulando indulgência e segurando a situação, lançou-lhe um sorriso cínico, entre o perdido e o conformado:
-Muito bem! Já vi que temos novo ogre literário a caminho! Adoro os pseudo-intelectuais, sabe, são óptimos para levar às vernissages de pintura, ficam bem na fotografia e sempre dão um ar de cultos! -sem as palavras certas, enveredou pelo cliché, magicando como o seu personagem se sairia duma destas, mas teria de ter uns seis confortantes gins de avanço. Ali era só um cliente, com a costumada crise balcânica, que diariamente cultivava ao balcão do bar, antes de na cumplicidade da noite virar o talentoso autor aplaudido pela crítica.
Patrícia sorriu, dominadora, e saiu apressada, deixando um comentário complacente:
-Quando conseguir ser uma pessoa, talvez venha a ser um escritor. Até lá, sabe o que é?É um administrador de fantasmas. E histórias como as suas não são o meu estilo, prefiro o original à cópia, o sofrimento sempre é mais autêntico, sabe? Tchau!
O Fred do Legendary escutou tudo, aviando uma imperial, mas concordando com ela. Humilhado, Aníbal pediu outro gin e saiu, danado. Em casa, pontapeou o portátil, num acesso de fúria, afugentando o Troika, que dormitava, e sentou-se no cadeirão. Na televisão, O Pátio das Cantigas chegava ao fim, o Rufino do candeeiro, por amor à senhora Rosa abandonava a bebida e incensava o leite com a filha do Brasil e já curado, marchavam a filambó felizes para todo o sempre, a palavra FIM depois do beijo deixava antever que sim.
Apanhando o portátil do chão, sentou-se com a cabeça entre as mãos e olhando a garrafa do gin, atirou-a contra a parede, fazendo delete das páginas do novo livro, o personagem morria antes de nascer.
No dia seguinte telefonou à Luísa, com a voz trémula pediu-lhe para a ver, queria o contacto do Anselmo, que fizera uma cura de desabituação. Pela tarde, voltou ao Legendary, numa mesa, Patrícia, vaporosa, tomava café com o namorado. Pediu uma Frize, que bebeu ao balcão, em silêncio, e ao sair acenou-lhe. Sem que ela tivesse tempo de dizer algo, levantou a mão e soletrou um silencioso “Obrigado!”
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