quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A jornada sintrense do cavaleiro Dom Quixote

Passando hoje 408 anos da 1ª edição, em Madrid, do imortal El Ingenioso Hidalgo Don Quixote de La Mancha, de Cervantes, uma pequena “estória” que, por lapso, o autor se esqueceu de incluir na obra original…
                    

Havia uma semana que deambulavam pelo Alentejo, Rocinante, acusando a idade, mal se arrastava pela quente planície, enquanto teimoso o burrito de Sancho se negava a continuar. Passado o Tejo em barcaça, e pernoitando em Bolembre, aldeola junto a Sintra, numa estalagem pobre e chã viu o nobre Dom Quixote uma poderosa mansão de gente da mais fina fidalguia, e nos saloios que os acolhiam nobres de farta fazenda, parentes quiçá de algum grande de Espanha. A taberneira estranhou os trejeitos do castelhano, e a desconchavada armadura, safava-se Sancho, que travava os ímpetos do amo, chamando manjar dos deuses a um prato de torresmos que lhes serviram, enquanto Quixote fazia vénias cortesãs à labrega Aldegundes, de peludo buço, no qual o avisado cavaleiro descortinou um sinal de nobreza, herança por certo de  coevos antepassados.
No dia seguinte, refrescadas as montadas, partiram para Sintra, terra da qual muito o cavaleiro da triste figura lera nas crónicas de Fernão Lopes, e onde amiúde se deslocava El-Rey Filipe, agora senhor destes reinos, em visita ao eremitério dos Capuchos, que um dia comparara ao imponente Escorial.
As verdes encostas lembravam-lhe a Bretanha, descortinado no alto o ameaçador castelo dum infiel califa, puxou da lança, ordenando trote ao Rocinante, e pedindo ao simplório Sancho que tivesse atenção, entrava-se em reino de Mafoma. Apesar de conquistado pelos guardiães do Templo, todo o cuidado era pouco, podendo a cada momento da várzea saltar um mouro infame, a quem haveria que trespassar. Sancho sossegava, os povos mais não eram que campónios na faina das hortas, belas maçãs vira nas terras de Almargem, e farta parecia a vila ao taberneiro arvorado em escudeiro.
Surgindo duma eira um saloio num jumento, saudou-o em tom cortês, destapando a tina de barbeiro que lhe servia de elmo, cumprimentando-o e aos habitantes do burgo. Já perto do Chão de Oliva, surgiu-lhes uma colareja, Constança Sapa de seu nome, e queijeira de mister, que vendo os forasteiros tentou vender-lhes deliciosas queijadas aconchegadas no burrico. Desconfiado, Quixote mandou que sumisse, mezinhas de bruxa lhe pareciam os ditos doces. Sancho bem quis provar uma, mas temendo a fúria do amo, calou, deixando a velha praguejando contra os castelhanos que assim desdenhavam dos seus dotes.
À vista das chaminés do Paço, um grito de guerra escapou do homem de La Mancha: ali estavam as vis masmorras do gigante Formentor, sobre quem lera em obras do português Castanheda, que tanto vivia no mar como devorador se aboletava em terras de incautas gentes. Com o Rocinante relinchando, agitado, Quixote deu ordem de investir:
-Ataquemos, fiel Sancho! Frágeis donzelas sofrem, cativas nas masmorras deste paço! Por Deus e Santiago! À minha ordem, honra e glória!
Já o corajoso libertador investia campo fora, quando assustado o burrito de Sancho lhe atalhou a marcha, evitando o pior:
-Senhor Quixote, Virgem Maria, travai o trote, que aquele é o paço d´el rey! Vede o estandarte, por supuesto! Não afrontemos quem é por nós, pode a ira de Don Filipe perder-vos em terras de Portugal!
-Sai da frente, leal Sancho, deixa que trespasse o monstro! Já azeite a ferver vejo cair de caldeirões pelas muralhas! Vinde, títeres infiéis! Prova a justiça do meu ferro, mostrengo desalmado!
A custo, o pançudo escudeiro travou o ataque, por ele ao menos se detivesse em sua ira. Acalmado, mas não convencido, o Rocinante deteve a marcha, já soldados da guarda chegavam a ver quem eram os temerários e ruidosos forasteiros. O capitão da guarnição, Don Roboredo y Gárzon, vendo o patético cavaleiro de lança em riste, deu-lhe ordem de prisão, mandando-o desarmar e acompanhar ao paço, onde se apuraria o motivo de tão desafiadora atitude, e a soldo de quem viajava. Dom Quixote exigiu falar com alguém da sua estirpe, o alcaide ou o estribeiro do rei, e sacudindo os soldados que o detinham, fez menção de sacar da espada, quando de imediato o imobilizaram e atiraram ao chão, como reles salteador:
-Largai-me, infames! Eu sou Don Quixote de La Mancha, Grande de Espanha e da
Andaluzia. Levai-me a vosso amo ou um certeiro degredo em Ceuta recompensará vossa ousadia!
O capitão da guarnição, achando o forasteiro perturbado, ordenou que o largassem, sem alijar a atenção, em surdina, Sancho inteirou o capitão das febres de seu amo, velho lavrador enterrado em livros, que pensava ser um predestinado cavaleiro andante. Tido enfim por inofensivo, foi largado, sujo e poeirento, matando a sede na Fonte da Sabuga, Sintra era sem dúvida terra hostil. Partindo pela estrada que levava a Lisboa, lançou o olhar para o castelo mouro, vociferando:
-Por Deus e Santiago, Sancho, em verdade é esta terra de desalmadas gentes! Sangue turbado de Mafoma! Toma nota do que te digo: breve voltarei, e não me chame Don Quixote, da nobre casa de La Mancha, ou as chaminés do Demo não demorarão a tombar! Trarei um exército de bravos, e logo o estandarte de Santiago flutuará naquelas vis muralhas!
Regressando pelo cálido Alentejo, de volta aos livros de cavalaria, levou o Cavaleiro da Triste Figura os meses seguintes na soalheira casa de La Mancha planeando a conquista do insurrecto bastião, que, milenar, lá continuou vendo reis e princesas, e cavaleiros até, mas dos verdadeiros, e de estirpe. Não fossem as atenções de Dulcineia del Toboso, e teria Sintra hoje uma estátua equestre do seu intrépido conquistador, triunfante no terreiro onde chaminés inimigas albergaram os títeres do Formentor.

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