O pianista dedilhava sofrimento, nervosos e ao mesmo tempo
graves, os dedos corriam o Teclado-Mundo, gritando silêncios e angústias, no
canto da casa de Gigarós. A sombra musgosa que o velho plátano lançava,
projectando-lhe a penumbrosa silhueta, realçava o que mais o velho músico
adorava, capturado por irregulares artrites mas insistindo, possesso, na
masturbativa dança pelas teclas do solitário e leal Steinway do avô.
Ernesto Valença, funcionário reformado do tribunal de Sintra,
antes calcorreando em pena e tinta azul notificações sem melodia, requiems
condenatórios ou allegros absolutórios, na orquestra onde maestros de negro
conduziam sinfonias de vida nem sempre nos melhores andamentos, para mais de dez anos
que deixara a casa onde a justiça era feita, mesmo quando injusta. Viúvo aos
cinquenta, sem filhos, tarde descobriu o fascínio pelo piano poeirento e
silencioso na velha casa da família. Curioso, descobriu o prazer dos sons,
estranhos e sibilinos antes, melódicos e angelicais depois. Faziam sentido, na
estrada do solfejo, premonitórios e libertadores. E, treinadas as mãos
entorpecidas, ganhou um novo e especial amigo, ao qual confessava tristezas
e desabafava emoções. Como felizes passara manhãs de primavera, e em torpor
vira chegar outonos belos, no seu castanho de dever cumprido, certos de
regressar algumas luas depois.
Tirando o Steinway e os livros, a Ernesto pouco mais
interessava, à excepção dos passeios pela serra, com o seu cajado, uma fina
vara da justiça que um dia comprara em Rio de Onor. Juiz de juízos silenciosos,
saía sem rumo a patrulhar a serra, captar os cheiros, únicos e eternos, para
horas depois regressar, e, tonificado, sentar-se à conversa com o velho amigo e
falarem das flores, do musgo ou dos pássaros, barítonos da natureza pura.
Um dia, num desses passeios, cruzou-se com Matilde. Matilde,
senhora de muitas primaveras e alguns Outonos já, era uma figura de porte
interessante. Enfermeira reformada, aguarela solitária, também ela a
conselho médico fazia caminhadas pela serra, a serra onde sós descobriam
multidões de emoções, de flores e borboletas, odores e chilreios. Com uma barba
primorosamente aparada, Ernesto lembrava um personagem de Balzac. O primeiro
encontro foi um mero cruzar na estrada, em silêncio, acompanhado de um
protocolar bom dia a caminho dos seus destinos, pela serra crepuscular. Uma
semana mais tarde, de novo voltaram a cruzar-se, perto da Pena, e dessa vez
cumprimentaram-se. Quebrando os rotineiros silêncios, Ernesto perguntou se a
podia acompanhar, respeitoso, falou-lhe da serra, do tempo, das memórias,
aos poucos. Matilde breve se revelou uma alma gémea. Enviuvara recentemente, e
caminhava para esquecer e ao mesmo tempo recordar, atravessando as feteiras,
recordava uma vida com o defunto Alípio, tempos de sorriso fácil e desprendido,
com amigas formara até um grupo de caminhadas. Uns tempos mais tarde, pelas bermas
da serra, encontraram-se em Gigarós e Ernesto apontou-lhe a casa solarenga:
-É aqui que moro! Posso
convidá-la para entrar?
Matilde aceitou. A casa era o rosto de Ernesto: elegante e
aristocrática, envelhecida, mas com charme. A um canto, o velho Steinway,
descansando, nobre e perfilado. Matilde abriu um surpreso sorriso, e dirigiu-se
até ele:
-Um Steinway! Você
toca, Ernesto?
-Sim…-orgulhoso mas a medo, Ernesto ia
abrindo um pouco de si para a enfermeira, não do corpo enfermo, mas da alma agora.
Matilde sentou-se, e sacudindo as mãos que antes manusearam compressas e tintura,
lançou-se, cirúrgica, sobre o velho Steinway, temerosa primeiro, decidida
depois, e desfiou o Nocturno Op.9 nº 2 de Chopin.
Ernesto pasmou. Solitário amador de música, passados os tribunais e a
partida de Sara, o destino, insondável, presenteava-o com um inesperado
sortilégio. A música inebriou a velha casa, e enlevado, fechou os olhos
e revisitou a sua vida, nem sempre calma, como a música, mas melancólica e
altiva. E o Steinway respondia, garboso, desconhecia aquelas mãos, dóceis e
meigas, que agora faziam dele o que sabia desejarem. Finda a melodia, Ernesto segurou
as mãos de Matilde e beijou-as, como um colibri osculando a mais doce flor do
seu jardim.
Nos tempos seguintes, os encontros passaram a diários, e as
tardes nimbadas abrilhantadas com o som do velho piano, como se das entranhas
expelido, vulcão de sentidos e lava de felicidade. Viúvos, mas não da vida,
tempos mais tarde disseram não ao conformismo. Não seriam Chopin e George Sand, mas
nas fragas de Gigarós, um velho Steinway a quatro mãos agora, concluiria
a melancólica mas bela sonata das suas vidas.
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