Chove lá fora. Maldita serra, toda a noite tossi, começou a gotejar no cómodo. Tal o fim dum Bragança, enjaulado nesta enxerga insalubre, tolhido na acção. Pedro levou de vencida, o infame, néscio e aleivoso, por certo se diverte agora com Maria Francisca, a rameira, bem sabe ela com seu esposo e rei nunca ter fornicado, por não ter casado donzela.
Louriçal trouxe uma tisana. Detesto tisanas, querem-me prostrado neste esconso. Os Açores aumentaram-me as febres, os pulmões, purulentos, quebram-me o ânimo. Abomino estas paredes, deixam-me doido. Ontem a carne tinha um sabor estranho. Veneno, por certo. Torcem pela minha perdição, sou um estorvo para o biltre que se senta no trono. Ah, como falta me fazem Joana e Catarina. Pobre Catarina, tão só em Inglaterra, com Charles, tão desprovido de carácter e nobreza, nenhuma alcova em Londres lhe deve escapar, só a de Catarina queda fria e triste.
A mãe nunca me entendeu. Piedosa senhora, sempre chorosa por Teodósio e Joana. Nunca me escutou os prantos, quando a febre me tolheu o corpo e fiquei só, tremendo e à mercê. Pedro, só ele, nas graças do Paço, do rei e dos validos, a sombra de Pedro, sempre. Ontem ouvi um guarda dizendo que esteve aí, caçando veados na serra.
Estou à beira dos quarenta, incham-me os olhos, desespero já pelo dia em que serei presente ao Altíssimo, soberano sem trono, marido sem mulher. Vivo entre sombras, escuras, como estas ladeiras de Sintra. Como fiquei tolhido o dia em que fui aclamado e Sousa Macedo desdenhou de mim, e exaltou o nome de meu pai para me humilhar! E Francisco de Faro, bajulador sinuoso, captando o favor da mãe e intrigando com Cantanhede. Onde estarão agora os dois?
Em cárcere toda a vida vivi, todos me tolheram os passos, já quando infante, da janela, via os filhos dos criados divertindo-se no Paço, e sem dó me impeliam para os deveres da gramática e do altar. Mateus, o filho do cocheiro, que saudade das furtivas correrias por Alfama, atirando pedras aos almocreves e às colarejas. Sempre o desejei. Como era viril o seu sexo, e o meu avaro em tamanho, quis Deus a mim imperfeito deixar. E António. Meu bom António, o único amigo que tive, por onde andará agora? Desespero pelo seu cabelo louro, pelos seus ombros fortes, o calor do seu corpo cheirando a estábulo, Conti, o dotado príncipe dos bordéis. Até ele me tiraram do Paço. Recordará ainda a Maria Parda, da Rua do Tijolo, em cujos seios se ia asfixiando, de grandes que eram? Ou a sova que mandei dar no juiz dos órfãos, por me não ter reconhecido certa noite em Alcântara? Pudesse voltar atrás e a meus amigos sem estirpe teria feito condes, e às mulheres da vida marquesas, que as outras o não são menos, e mais feias. Apontaram-me despropósitos, desplantes, porém, mais debochado não é o usurpador que captura o trono e esposa de seu irmão e corrompe físicos para que lhe apontem maleitas no corpo, mentindo sobre o seu poder de procriar? Acaso as mulheres de mim estivessem longe Leonor de Moura se teria sangrado a si própria quando sofri de aleijão, para que só me não sentisse, sendo eu o sangrado? E Filomena de Milão, as mais belas e sabedoras mãos que em homem tocaram, paraíso carnal a que nem frei Agostinho resistiu quando ajoelhada lhe suplicou bênção?
Ouvi a um guarda que designaram o conde de Odemira para o Desembargo do Paço. Oxalá desonrado seja, e amaldiçoados os seus, intrigando junto de minha mãe, a rainha D.Luísa, a sugerir açoites, e que de mim afastassem o meu estimado António. Jerónimo de Ataíde perguntou por mim, disse-me o chefe da guarda. Meu bom amigo, como sinto a sua falta. A semana transacta contei as voltas que dei neste quarto infernal. Noventa e seis. Comecei a contar as formigas em carreiro, subindo às chaminés do Paço. Como gostaria de ser uma delas, trepando, e escapulindo para a serra, apedrejando as beatas à porta da missa ou roubando fruta como vulgar camponês. Rei do cárcere, eis o que sou, exilado em meu Reino. Antes a morte, que venha depressa!
A mãe nunca perdoou tê-la afastado da regência. Não mais a vi, recolhida aos Agostinhos Descalços. Morreu com rancor. Rancor! A bondosa Luísa de Gusmão não podia ceder ao rancor, é impróprio duma rainha, forte com os fracos e fraca com os fortes. Partiu já. Partiram todos, e eu mais só, morto, mas insepulto ainda.
Acaba de passar um rato. Acho que o vou fazer conde, rei que sou deste quarto, sala do trono do meu mando. Ontem nomeei marquesa uma barata. Marquesa de Sintra. Soa bem. Jurou-me fidelidade. Os esbirros de Pedro vão ficar possessos. Apesar de cativo,o vitorioso de Elvas e Montes Claros respira ainda, acicatado pela raiva. Por pouco tempo, temo, que os males da alma quebrantam o corpo. Corvos negros pousaram no beirado, é mau presságio.
A tinta está a acabar, os olhos ardem-me. Nos Açores podia caminhar à beira mar. Tempo de mais uma volta, noventa e sete. Os homens de Cadaval patrulham, há nove anos que assim é, oiço-lhes as botas servis e os grunhidos boçais.
Hoje cuspi sangue. O físico sangrou-me, mas sinto que o meu corpo se fina. Seja. Noventa e sete vezes amaldiçoados Pedro e Maria Francisca, vassalos de Belzebu. Aos vis, até o perdão e a justiça parecem vil. Os títeres só gostam de si próprios.
Arrefece. O rato tornou a passar. Sorriu-me, o novo conde. Fiz-lhe uma vénia, magnânimo, agradeceu, dei-lhe a mercê dum naco de pão. Um rei tem de zelar pelo bem dos seus súbditos!
Sintra, aos 7 de Abril do Ano da Graça de 1683
Afonso, Portugal Rex
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