No dia em que passa mais um aniversário dos TapaFuros, irmãos e amigos de várias cumplicidades, aqui reedito um texto a eles dedicado, por mim escrito em forma ficcionada algum tempo atrás. Aquele abraço!
A tarde caía fresca na penumbra das frondosas árvores, no improvisado camarim da Regaleira, actores e técnicos agitavam-se para a estreia de Hamlet, com toda a família Tapafuros em azáfama, levando o príncipe de Elsinore ao palco da Quinta Mágica. Em noite cacimbada, com um ventinho irritante mas familiar, mestre Rui Mário dava instruções, o teatro feito verbo, atento a detalhes e lembrando marcações, enquanto ao relento e num canto Hilário testava o som, revendo as músicas minimais com que ilustraria o desassossego em som. Já vestido e maquilhado, Samuel, o Hamlet de Sintra, relia o texto uma última vez, muita merda, haviam já desejado a Rute e o João Vicente. Noite fora, a lua cheia bafejaria as mulheres com uma hora pequenina, também a peça entraria em trabalho de parto. Na bilheteira, com o conforto de casa cheia, Marco desdobrava-se recebendo os espectadores, cúmplices, os amigos viriam para um copo ao fim da noite. Um percalço: um jovem actor, nervoso com a estreia, tivera uma "branca", o Olavo substituiria, decorara o texto.
Desta vez, Rui Mário seria o fantasma, invisível voz na noite escura, do além conduzindo os títeres mortais em valsa lenta. Ao jantar, no Culto, bebera um revigorante tinto, qual guerreiro antes da batalha, ortónimo de fantasmas vários, da vida, de vidas, fingidor, sem falsidade. No camarim, com Samuel, a verificação das marcações, a colocação da voz, o guião uma vez mais relido:
-"Que velhaco sou eu, que vil escravo! Pois não será monstruoso? Este actor pôde, numa simples ficção, num sonho apenas de paixão, forçar a alma aos seus preceitos, a ponto de fugir-lhe a cor do rosto, marejarem-lhe os olhos, o conspecto confundir-se-lhe, a voz tornar-se trémula, e toda a compostura conformar-se às suas influências?" -repetiam, o texto em confissão, a confissão em texto, olhar no espelho onde Samuel era Hamlet, e Hamlet o mundo.
O silêncio invadia a noite no antro do Grande Alquimista. Começada a função, a pantomina das máscaras desfilou o seu jogo de sombras, Sintra-Elsinore, Dinamarca em Cynthia, a pequenez e grandeza dos homens, convocando-os para o desvendar das fragilidades que o truão de Stratford-Upon-Avon desnudara, temido dos poderosos, mordaz porta-voz dos sem voz. Os jovens actores do Resistências debutavam, como há vinte anos outros o haviam feito, tapando furos das aulas, iniciáticos filhos do teatro. Um deles, fazendo de discreto escudeiro no Pátio das Quimeras, outros dois, de silenciosos cortesãos na corte de Cláudio, rei indigno, no palco do mundo, muitos Cláudios por aí pulando também na pérfida récita da traição. Rui Mário acompanhava, tutelar, e o primeiro acto fluía, o público bebendo as palavras ditas, Rui, letárgico, repetindo-as, sentidas:
-“Oh, se esta carne sólida, tão sólida, se desfizesse, fundindo-se em orvalho! Ou se ao menos o Eterno não houvesse condenado o suicídio! Ó Deus! Ó Deus! Como se me afiguram fastidiosas, fúteis e vãs as coisas deste mundo! Que horror! Jardim inculto em que só medram ervas daninhas, cheio só das coisas mais rudes e grosseiras”
Marco registava em vídeo, e como produtor eficaz, guiava uma jornalista, que assistia, prometendo uma reportagem para a televisão. No canto superior da bancada, os amigos dos Tapas escutavam em silêncio, no final se daria bálsamo às gargantas, no primeiro dia do resto daquele Verão.
-Cada peça encenada é um libelo de resistência - comentou o Rui para o Jorge Menezes- fazer teatro hoje é ter a sobriedade de ser louco, porém sem loucura corremos o risco de ficar doidos - rematou, o criador olhando a criatura, Jorge, aconchegando o cachecol, concordou, só os Tapas o arrancavam do exílio em Fontanelas.
Aos poucos, a peça caminhava para um perturbador clímax, que o dramático enredo tecera, profético, inquieta, a sonoridade do Hilário acompanhava, e na bancada expectante antevia-se a tragédia, renovada em cada récita. Já Samuel erguia o crânio do bobo Yourik, finitude de Ser prostrado convidando à reflexão, e no confessionário da Regaleira-Mundo se incensava a Vida, abúlica e trágica nas lapidares palavras confessadas por gerações de actores, naquele mágico e catártico momento do Grande Teatro do Mundo:
-"Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se…"
A assistência bebia cada palavra, no breu da noite, druida junto ao carvalho, Rui Mário, de olhos fechados, deixava cair o pano imaginário, Príncipe da Dinamarca no orvalho de Sintra, desfiou o texto para si, na solidão do recinto cheio:
-"Morrer… dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando enfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa ideia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis amorosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal?
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