O arquitecto
apressou-se a apanhar um táxi, a fila ia extensa na zona das chegadas do aeroporto
de Lisboa. Uma corrida até ao Algueirão, depois duma visita de três dias à
Batimate em Paris, queria era chegar e tomar um duche, o atelier esperaria para
o dia seguinte. O motorista, grisalho e para aí com cinquenta anos,
transportou-lhe a mala, de taxímetro já ligado, enquanto a menina da central,
monocórdica, debitava pedidos imperceptíveis pelo intercomunicador.
Após quinze anos
como técnico da Câmara Municipal de Sintra, António Salaviza metera licença sem
vencimento e aventurara-se na privada, umas moradias no Algarve, um projecto
interessante para o Lobito, e como todos os anos, regressava de mais uma feira
de materiais de construção, com menos portugueses agora, sinal da crise. Pelo retrovisor,
de quando em quando, o motorista deixava escapar um olhar de soslaio sobre o
passageiro, António, atento, meteu conversa:
-Então o serviço? Muitos passageiros?
-Está mau, amigo, nesta altura do ano há menos
turistas, não chega para o petróleo -desabafou, buzinando a um Fiat que
fazia uma ultrapassagem na Gago Coutinho.
A voz e o rosto pareceram contudo familiares a António:
-O amigo é daqui da zona?
-Sou da Abrunheira, aliás sou de Tomar mas moro há
muitos anos por cá! A seguir a deixá-lo aproveito e até vou almoçar a casa! -respondeu,
mais expansivo. De repente uma luz avivou ao arquitecto a memória daquela
figura:
-Desculpe lá, mas você não é o Ribeiro Antunes, que
tinha umas urbanizações ali para os lados de Paiões?
O taxista deixou
escapar um ar surpreso, virou-se e mirou o cliente:
-Ora se não é o arquitecto Salaviza, da
Câmara de Sintra! Há quanto tempo, senhor arquitecto! -um sorriso recordava
velhos tempos, melhores por certo, apagou o rádio para falar melhor.
-Então, mas o que é que lhe aconteceu? Mudou de
ramo?
-Coisas da vida, senhor arquitecto. Lembra-se
daquela urbanização em Paiões, os vinte lotes da minha empresa, a Antunobra,
até levou cinco anos para aprovar…
-Sim, tenho uma ideia, eu também já não estou
na Câmara, sabe, nem vou lá há muito tempo.
-Pois é, deu tudo para o torto. O meu sócio o
Parreira, fez um desfalque nas contas, e o banco veio em cima de mim, até o
terreno lá na terra foi à vida. Depois com a crise, os lotes não se venderam, a
Câmara começou a cortar nas licenças e tive de me virar.
António Salaviza
meditava sobre as ironias do destino. Lembrava anos antes o agora motorista de
táxi num Porsche e a pagar almoços no
Porto de Santa Maria, garrafas para
os amigos no Elefante Branco, o boom da construção no seu auge.
Desorganizado, fazia do banco do Porsche
o escritório, onde se misturavam licenças e alvarás, plantas e alçados,
reuniões com vereadores a quem ligava directamente, sessenta empregados com
quem partilhava almoços em cada pau de fileira dos prédios a crescer na Sintra
dos anos 90.Agora, guiava um táxi e almoçava em casa.
-Então e não pensa retomar noutro lado?
-Já estou velho, arquitecto. E sabe, assim até são
menos dores de cabeça, fiquei com um andar lá em Paiões, os filhos estão
criados... -encolheu os ombros, o semáforo caía na segunda circular e pelo
telemóvel a mulher perguntava se ia almoçar, eram pataniscas com arroz de
grelos.
-Pataniscas? Bem bom, com um tinto lá de
Tomar, vai saber que nem ginjas! -consolou-se, outra vida, outro mundo.
Salaviza lembrava os almoços com vereadores e empreiteiros, as lagostas suadas
e os whiskies de vinte anos. Como
Portugal mudara, da selva de betão que sempre lhe fizera confusão, mas que os
políticos pressionavam, em nome do superior interesse concelhio, ao quase
marasmo, nem uma obra ou uma grua em toda a linha de Sintra. Ao passar por Rio
de Mouro, o taxista olhou melancólico, ao fundo ainda se viam as silhuetas de
prédios da Antunobra por vender, tomados pelo banco, o andar modelo no último
piso. Ribeiro Antunes suspirou e carregou no acelerador, IC 19 acima. Chegados
ao destino, Salaviza deixou-lhe o telefone, mal ou bem era um personagem dum
passado recente e ao mesmo tempo longínquo, alimentado pelo novo-riquismo da
época e a convicção de que as coisas não acabariam nunca. Antunes agradeceu,
tirou as malas, deixando-as à porta da moradia, e lançou um olhar cúmplice ao
antigo técnico da Câmara:
-Deseja factura, senhor arquitecto?
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