No
laboratório da Calçada das Necessidades, o professor Guimarães e o seu
assistente Guilherme ultimavam a experiência com que finalmente demonstraria a
possibilidade de viajar no tempo, a máquina, criada a partir de um aparelho de
tomografia axial computorizada, permitiria, segundo ele, o transporte ao
passado, a experiência decisiva estava marcada para essa noite:
-Caro
Guilherme, de acordo com Einstein, o tempo passa mais lento à medida que um
objecto se aproxima da velocidade da luz, logo viajar mais rápido que a luz
abrirá a possibilidade de viajar no tempo. A ideia é entrar num buraco negro e
penetrar numa estrela em fim de vida, que ao colapsar entrará num anel de
neutrões rotativo. Este produzirá uma força centrífuga suficiente para impedir
a formação de uma singularidade. Como o buraco negro não tem uma singularidade,
vamos penetrá-lo usando este aparelho, sem ser esmagados pela força
gravitacional do seu centro! -o professor chegava ao momento alto da sua
carreira, a experiência que até ali só o cinema e a ficção haviam explorado.
Guilherme acompanhava o entusiasmo do mestre, professor de Física na Universidade
de Lisboa. - Ao atravessarmos, vamos sair num buraco "branco" que
em vez de atrair o que estiver ao alcance da sua força gravitacional para
dentro de si, vai empurrar tudo para fora e para longe. Esse buraco branco
criará a possibilidade de viajar no tempo!
Preparados
os fatos térmicos, programaram a máquina e experimentaram uma primeira viagem,
curta: Lisboa e aquele mesmo local, o ano: 1835.
Depois
de náuseas e duma sensação de vertigem incontrolável, que durou trinta
segundos, aterraram desgovernados num celeiro onde dois cavalos relincharam à
chegada do inesperado volume. Ainda tontos e de olhos esbugalhados, confirmaram
o sucesso da experiência: mesmo em frente e de construção recente, estava o
Palácio das Necessidades, onde a guarda real rendia a parada e, pensativo, um
padre saia do palácio. O professor dirigiu-se a uma taberna, num esconso perto,
e perguntou o que se passava:
-Vossas
mercês são de fora? Então não sabem que o marido da rainha está à morte? Pobre
homem, ainda agora chegou a Portugal…- respondeu um galego, carregando um
barril.
Guilherme
recapitulou os conhecimentos de História, pelas suas contas o doente só poderia
ser o príncipe Augusto de Leuchtenberg, primeiro marido de D. Maria II, chegara
a Portugal em Janeiro desse ano, mas viria a morrer de difteria dois meses
depois. Aí, teve uma ideia luminosa:
-Professor,
podíamos ajudar a resolver este problema. Sabe que o príncipe morreu de
difteria? Podíamos usar os conhecimentos da medicina que já possuímos, e tentar
salvá-lo!
-Boa
ideia, Guilherme. Vamos ao palácio, tentaremos apresentar-nos como físicos
experimentados, a ver o que sucede! Temos de ser discretos, e arranjar roupas
da época!
Com
facilidade o professor conseguiu acesso ao palácio, chorosa, a rainha antevia
já o desenlace ao fim de dois meses de casada, qualquer conselho seria
bem-vindo. Efectivamente, as amígdalas e faringe do doente desenvolviam uma
membrana de pus ao fundo da boca, a produção da toxina e a sua libertação no
sangue poderiam levam à morte cerebral. Sacando duma mala que trouxera do
futuro, o professor, perante a incredulidade dos físicos presentes, administrou
ao doente uma vacina que actuaria sobre o sistema imunológico, bem como algumas
doses de penicilina e eritromicina, para destruir as bactérias nocivas. Dois
dias depois, a febre baixou, o príncipe deu sinais de melhoras e missas de
júbilo foram rezadas por toda a cidade, o pior parecia ter passado. Os dois
estranhos, a par de acompanharem a convalescença do paciente, visitavam Lisboa,
tirando notas e apresentando-se aos mais desconfiados como académicos vindos da
Prússia, a recuperação do marido da rainha afastava suspeitas.
Três
dias depois, discretamente, voltaram ao presente, a registar a experiência, e
preparar novas viagens. O professor Adérito, um colega de Sintra ligara
entretanto, queria trocar ideias com Guimarães sobre um acelerador de
partículas, mal suspeitando do sucedido, já ligara várias vezes, mas ninguém atendera, deixara mensagem. Sempre
disponível para o Adérito, lá foi, era um velho amigo. Para seu espanto, à
saída de Lisboa apenas árvores e campos de trigo, a estrada de
Sintra era um tapete em macadame e as hortas povoavam a paisagem, sem vestígio
de comboio, IC-19 ou da selva de betão a que já se habituara. Na serra de
Sintra, para seu espanto, desaparecera o Palácio da Pena, e só o castelo dos
Mouros e o Paço da Vila subsistiam, ao abandono. Abordando um transeunte que
passeava na vila, à chegada, sondou-o sobre o que sucedera:
-Palácio
da Pena? Ó amigo, ali nunca houve palácio nenhum. Quando muito está lá uma
ruína dum convento antigo, daqui até lá acima é só mato e pedras. Isto em
Sintra, nunca ninguém fez nada! -suspirou,
em torno do Paço havia um pequeno terreiro, e vinte a trinta casas rústicas,
nada estava como poucos dias antes. Num arremedo luminoso, percebeu o que
acontecera, e sem chegar a falar com o colega, voltou para Lisboa, precisava
falar com Guilherme urgentemente:
-Gulherme,
temos de voltar ao passado de novo, aconteceu uma coisa terrível!
-O
que foi professor? Baixaram o rating do país de novo? Isso já não é novidade…
-Pior!
Ao salvarmos a vida do príncipe Augusto, alterámos o futuro!
-Como
assim?
-D.
Maria II, depois de enviuvar, casou em segundas núpcias, em 1836, como é
sabido. Ora ao salvarmos a vida do primeiro marido, o segundo, D. Fernando
Saxe-Coburgo não chegou a ser rei de Portugal, e como tal nem o Palácio da Pena
nem tudo o que ele planeou foi construído. Mudámos a História de Portugal!
-Oh
diabo, não nos lembrámos disso…- o
assistente coçava a cabeça, fora ele que de boa-fé sugerira salvar o moribundo
príncipe com difteria.
-Temos
de voltar lá e deixar a História cumprir o seu destino!
Nessa
noite, voltaram a accionar a máquina do tempo, lá deixando falecer, no meio do
choro geral, o marido da rainha de Portugal. Detiveram-se alguns meses,
desta vez, a estudar os costumes da época, sempre cuidando de em nada
contribuir para alterar o futuro. Quando os esponsais de D. Maria II e D.
Fernando finalmente se realizaram, disfarçado no banquete, e exercitando os
três anos de alemão no Goethe Institute de Lisboa, Félix Guimarães aproximou-se
do novo rei, louro e de cabelos desalinhados, e meteu conversa:
-Majestade,
vai gostar muito da sua nova pátria. Olhe, sugiro que vá até Sintra, é um sítio
maravilhoso, com um clima ameno e prazenteiro, semelhante ao do seu país.
Poderia até fazer lá uma casa para o Verão, a rainha iria adorar….
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