O sábado de
Outono estava solarengo, sol baixo e fora de época. Intruso, Bruno rumou à cidade, deserta como há muitos domingos para cá,
desde que, fugindo, os moradores se mudaram para o subúrbio, escapando de rendas
caras e prédios em ruína. Ao sábado, Lisboa era pachorrenta e ausente,
de ruas vazias e centro despovoado. Sob a arcada de um prédio, um sem-abrigo
dormitava, dando voltas na caixa dum plasma, a cidade inteira como quarto, o céu como candeeiro.
Após um galão num tasco decorado de ovos verdes e jaquinzinhos da véspera, rumou à
Graça, no 28, esventrando as aguareladas vistas de Lisboa. Velhinha e mal tratada, a cidade era sempre familiar, varina, e aristocrática, secular testemunha de autos de fé e carreiras da Índia, pestes e cercos. E a luz, essa luz azul rasgada, cegando de
radiosa, quente e colorida.
Ao contrário
do céu, iam cinzentos e perigosos os dias e tempos. O espírito em baixo, os
amigos desalentados, a vontade de partir, sem mapa
para a felicidade ou plano B para o dia seguinte. Uma prostituta velha saiu duma
pensão, familiar de décadas, ambas velhas e a cair. Observador, sentou-se no miradouro, onde sobreviventes de vidas se arrastavam a caminho
de mais um jogo de cartas, um cigarro ao canto da boca e rugas veteranas, que um
turista atento fotografou, radiografando almas em silêncio. A manhã passou vagarosa, e Bruno deteve-se em volta dum
licor, familiares e chiando, os eléctricos iam cruzando as vielas apertadas.
Curiosamente,
lembrou-se de Fernando Pessoa, e imaginou-o ali, sulcando a cidade, bebendo
aguardentes em tascas, vendo passar os mesmos eléctricos e o mesmo céu azul. Há magia em Lisboa, e a sua poção é
o fado, pensou, despejando a ginja.
Tocando o
telemóvel, Susana perguntou por ele. Saíra sem avisar, um desejo irresistível
de deambular levara-o no comboio, explicou, não se inquietasse, voltaria pela tarde. Um
casamento rotineiro, esfriada a paixão, aguçava a vontade de se isolar, a pensar
nas coisas, prisioneiro do tédio e do emprego, da mesma bica à mesma hora, e da imperial ao final do dia, espectral e sórdida.
Descendo à
Baixa, tocou o sino na Sé, o casario despertava aos poucos, vindas
da missa, senhoras idosas, com ciáticas e reumáticos, voltavam a casa. Por
momentos pareceu-lhe reconhecer a gabardina de Pessoa, a parar para um analgésico brandy, a
marcar o ponto no Martinho. Faltava um Martinho a Bruno, cansado do café do
Baptista, mausoléu de chamuças requentadas e bolos de arroz intragáveis, até
nisso era execrável o subúrbio. Melhor seria voltar a casa, enfiar-se num
Chopin com gin, ou num Duke Ellington
de reserva, Susana ainda iria visitar a mãe, tinha um dia
horroroso em perspectiva. Fugido da cidade nua, refugiar-se-ia no quarto,
esperando-a, sonhando cidades felizes e futuros em papel, no seu
mundo de fortuito escritor. Voltou ao comboio, esse fantasmagórico trem de terrores mundanos, vidas perdidas e sem salvação, olhares
aflitos arrastando-se no grafitado depósito de existências,
e fechou os olhos, ausente, exilado.
Saiu em Queluz, para um martini. Ali esperaria Susana, até voltar da visita à mãe, já não aguentava os
queixumes de D.Berta e os bicos de papagaio.
Estranhamente, pareceu de novo ver o vulto do Pessoa ao balcão, em pé, devia ser do
licor, que faria o poeta de Orpheu naquele ermo que nem absinto vendia? Pensando bem, tinha razão de ser, o lugar de
Pessoa seria ali, entre gente perdida, e a leste da esperança.
Susana chegou
entretanto, recriminando-lhe a ida a Lisboa sem avisar. De volta a casa, logo
voltou a sair, a buscar um xarope na farmácia. Letárgico e aliviado, por mais
uns momentos a sós, Bruno enfiou-se no quarto, pondo a tocar um Mussorgsky de vinil. Saudosista, buscou um velho álbum de fotografias, confortando-se com os
rostos alegres e vivos dum passado agora sépia, bebendo outro martini. Curioso, como o passado
era sempre feliz, os rostos sorridentes e soltos, e as fotos de família
nunca transmitiam angústia ou pesar, mas crença no futuro, rostos sem acne,
glamorosos mesmo, nos fatos estreados para tirar o retrato.
Tocou o telefone, interrompendo-lhe a introspecção. Era o João, colega do escritório, convidava-os para um fondue lá em casa, estavam só ele e a Sónia, os miúdos haviam saído com amigos. Aceitou. Pensando bem, o sábado fluía depressivo, o Reguengos do João depressa o devolveria ao presente. Regressada a Susana, foi tomar um duche. Ao arrumar o álbum na gaveta, numa foto do casamento do avô Jesuíno, descortinou uma figura familiar, posando esfíngica ao lado dos noivos. Era Fernando Pessoa. Com um ar melancólico pareceu-lhe fitá-lo, finito no infinito. Esfregou os olhos, fechou a gaveta e meteu-se no chuveiro, maldito martini!
Tocou o telefone, interrompendo-lhe a introspecção. Era o João, colega do escritório, convidava-os para um fondue lá em casa, estavam só ele e a Sónia, os miúdos haviam saído com amigos. Aceitou. Pensando bem, o sábado fluía depressivo, o Reguengos do João depressa o devolveria ao presente. Regressada a Susana, foi tomar um duche. Ao arrumar o álbum na gaveta, numa foto do casamento do avô Jesuíno, descortinou uma figura familiar, posando esfíngica ao lado dos noivos. Era Fernando Pessoa. Com um ar melancólico pareceu-lhe fitá-lo, finito no infinito. Esfregou os olhos, fechou a gaveta e meteu-se no chuveiro, maldito martini!
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