Escreveu Miguel Torga ser apanágio do português ter uma
nesga de terra para nascer e o mundo inteiro para morrer. Assim é, desde Ceuta
e da senda do mar-oceano, antecedendo a ecuménica miscigenação dos
Albuquerques, e a criação da mulata, lusa invenção a sul do Equador, as levas para o Brasil, ou a fuga para França a salto nos idos de sessenta. Pelo mundo
repartido, negreiro ou soldado, colono ou evangelista, poucos recantos há onde
o português não tenha erguido igreja, construído forte, porfiado fazenda, ou
aumentado a prole. Fê-lo sempre em atenção à grandeza da alma e do sonho, e à
estreiteza do chão, e, frente a um mar cúmplice e desafiador, partiu a
sulcá-lo, em frágeis cascas de nozes ontem, a partir de aeroportos, hoje.
A crise dita a cadência das partidas, por desafio, umas,
por subsistência, outras, é porém do gene luso partir, mas, soltando amarras da
terra, jamais se desprendendo da pátria (eu sei, eu sei, cheira a 10 de
Junho…). Não é por acaso que em cada canto do mundo há um rancho ou procissão,
um fado sofrido ou um frugal cheiro a chanfana, um cachecol da selecção ou uma
senhora de Fátima. Esta doença crónica, a que chamam ser português, é uma
doença incurável, que anos de ausência ou quilómetros de saudade não mata,
porque é sã, e porque sangra, porque se partidas houve em desafio e conquista,
outras houve de exílio interior, de desterro da própria terra, de raiva pela
zanga com Portugal, de um amor-ódio que não resiste a um
fado de Amália ou ao som de um adufe beirão.
Escreveu Agostinho da Silva que os que emigram são
os reais portugueses, os portugueses que preferem todos os incómodos de um
exílio à dor de viver numa pátria que, de sua, só tem céu, terra e mar. Tem
muito de autobiográfico, esta opinião, mas terá de ser sempre assim? Será, como
gritou Almada na Cena do Ódio, que o
pior de Portugal são os portugueses? E porque será que saindo, passam logo a
competentes, vencedores e visionários? Porque a intelectualidade lusa se
compraz a ver no país o Reino Cadaveroso e lá fora,
fulgurantes terras prometidas?
Novas levas partem por estes dias, engrossando o exército
dos ausentes, flagelados da crise, não já para uma emigração gloriosa, mas para uma nova
vaga de emigração dolorosa, como lhe chamou Eduardo Lourenço. Não já com malas
de cartão, mas com Ipad e Skype, na
era global em que Londres fica perto de Murça, e a Austrália a um clique no Facebook. Ainda assim, expatriados.
Poderão voltar, passada a borrasca, e apelando o sangue. Pode porém novo sangue
despontar, passados muitos sóis e muitas luas, encontradas noivas, nascidos
filhos ou alicerçadas carreiras. Serão sempre portugueses, não duvido. Mas o som
do adufe e o iodo das praias tenderá a ser nublado e vago, o rincão mero resort de férias, e a aldeia, rua, ou velha
casa, um retrato num álbum do Picasa. E sem sangue novo, que estimule massa
crítica, anime o consumo, permita o imposto, e repovoe o país, cada vez mais
avaro do riso de crianças e de esperança nos rostos, difícil será contrariar o
mago Torga, enredados no labirinto da História, que da esperança faz saudade, e
do futuro purgatório. O esforço da hora presente é de Libertação da Morte para,
uma vez mais, não sermos da vida vencidos.
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