-Que chatice! -protestou Ana Maria a caminho do Instituto, maçada com
a chuva persistente, ela bem sabia que aí vinha, fazia 5 dias que o forecast de satélite o prognosticava. Sismologista no Instituto de Meteorologia há
4 anos, cabia-lhe a monitorização da actividade sísmica. Na véspera, 23 de
Outubro, domingo, apenas um registo insignificante, um abalo na latitude 36,96
longitude -13,58, magnitude 2.0 na escala de Richter, registara o sismógrafo,
em Lisboa. Nesse mês, o registo mais forte fora dia 7, pelas 22h18m, 4.0 na
escala de Richter, nos Açores, com epicentro a 50 km oeste-noroeste de Ginetes,
em S.Miguel.
Aproximando-se
mais um aniversário do terramoto de 1755, iria trabalhar na comunicação que
faria a 31 na Gulbenkian, com a ajuda de Tomás Moreira, jovem e entusiasta
colaborador, um nerd, segundo a filha
Bárbara, que tendo-se cruzado com ele uma vez no Instituto, logo o achou um
chato, com óculos de massa e o cabelo cheio de caspa. Nessa manhã, também Tomás
chegou cedo, para alinhavarem a comunicação:
-Bom dia, doutora? Bela chuvinha, hã…Já cá
faltava!
-Sim, ao menos não teremos problemas com a
falta de água em Bragança, Tomás. Como estamos de comunicação?
-Tenho o powerpoint quase pronto, doutora- adiantou-se, terminando um croissant, e querendo mostrar serviço- veja!
Abrindo o
computador, foi passando uma sequência de quadros sobre o terramoto de Lisboa,
explicando-os em detalhe:
-Em 1914, Harry Fielding Reid, um americano, disse que
a origem teria sido no Atlântico, a cerca de 100 quilómetros a ocidente de
Portugal. Em 1940, um catálogo da sismicidade na Península Ibérica, de um autor
espanhol, propôs uma zona a norte do Gorringe.Foi o Gorringe, a 200 quilómetros
a sudoeste do Cabo de São Vicente e a 300 de Lisboa, que durante muito tempo
concentrou as atenções. Essa montanha submarina tem 200 quilómetros de
comprimento, está a 50 metros de profundidade e está rodeada de planícies
abissais que descem aos cinco mil metros. E parece que tem estado activo por
estes dias, não tem ouvido as notícias sobre as erupções submarinas nas Canárias,
doutora?
-Sim, mas essas já são frequentes-
desvalorizou a sismóloga- Se fossemos a
levar a sério todos os abalos dos Açores, por exemplo, vivíamos em alerta
laranja…
Compenetrado,
Tomás continuou:
-É uma estrutura geológica que está numa zona
crítica para a tectónica de placas, na fronteira entre a euroasiática e a
africana, que começa nos Açores e se segue com facilidade até ao Gorringe, mas
aí, deixa de se perceber a transição. O traço da fronteira desaparece, porque
passa a ser distribuído em várias falhas. O ponto onde se dá essa viragem é o
Gorringe, por isso chamou tanto a atenção. Depois do sismo de 28 de Fevereiro
de 1969, com uma magnitude de 7.5, passou a considerar-se que a origem do
terramoto de 1755 teria sido a mesma. Ou seja, a sul do Gorringe, na Planície
Abissal da Ferradura...
-Sim, Tomás, mas não esqueça que a chegada à
costa dava tempos superiores aos dos registos históricos. Daí que se tenha
vindo a eliminar esse local. Em 1998 apresentaram-se novas teorias em artigos
no Journal of Geodynamics. O Nevio Zitellini, do Instituto de Geologia Marinha
de Bolonha, descobriu uma falha geológica a 100 quilómetros a oeste do Cabo de
São Vicente. Chamou-lhe "Marquês de Pombal", num artigo publicado em
2001, foi essa a localização provável da origem do terramoto de Lisboa!
-O problema é que essa falha, com 60
quilómetros de comprimento, não chegava para gerar um sismo de 8,7 de
magnitude, doutora. Mesmo se se rompesse todo o segmento do Marquês de Pombal,
a energia libertada corresponderia a metade da do sismo de 1755. Há de certeza
uma segunda localização! O Zitellini descobriu uma origem dupla para o
terramoto: para ele, deveu-se a uma ruptura da Falha do Marquês de Pombal, em
conjugação com o rompimento da crosta ao longo do banco do Guadalquivir.
Entrando
nessa altura, o doutor Guedes, também cientista do Instituto, ajudou ainda mais
à especulação, introduzindo nova teoria:
-Meus amigos, somos cientistas ou charlatães?
É claro que o epicentro foi no arco de Gibraltar! Ali é uma zona de subducção
activa, na qual um bloco de uma placa velha mergulha e, ao descer no manto,
deforma a superfície. Acreditem, foi aí que nasceu o terramoto de 1755!
Montada a
apresentação, na tarde de 31 de Outubro lá apresentaram o trabalho. Bárbara, a
filha de Ana Maria compareceu, sentando-se contudo longe de Tomás, que a
aborrecia com as suas teorias sobre sismos e tsunamis. A sala estava composta, poucos minutos antes de subir ao
palco, o telemóvel de Ana começou a tocar, interrompendo a conversa com o prof.
Jenkins, de Liverpool, uma autoridade mundial em tsunamis e orador essa tarde. Como não parasse o toque, do
Instituto por sinal, acabou desligando o telemóvel.
A
comunicação foi muito aplaudida, se bem que as várias teses de epicentro
permanecessem irredutíveis. Eram oito horas, e dali seguiriam para um jantar
com os convidados, na zona das Docas, em Lisboa. Chuvosa, a noite de Lisboa,
passada a porta da Gulbenkian, tinha um ar pesado, uma claridade esquisita,
mais chuva para o resto da semana, pensou Ana Maria, enquanto Tomás enfiava um
chapéu patusco que a fazia lembrar o Professor Pardal. Só chegados às Docas
voltou a ligar o telemóvel. O Tejo estava revolto, e todos os restaurantes
tinham recolhido as esplanadas. Procurou um telheiro, e ao sinal de ligação,
vários SMS foram despejados em cadeia, todos iguais:” Liga Instituto. Urgente”
-Nem
a esta hora me largam! -protestou, ligando para o Instituto, estavam lá o
Guedes e o Vasco, porque lhe ligariam a essa hora, e em véspera de feriado?
Estabelecida a ligação, o Guedes, agitado e deixando escapar um arfar de
pânico, mal deixava entender o que dizia:
-Ana, onde estás?! Temos um caso grave, muito
grave! O sismógrafo de Mafra indica actividade sísmica muito alta com origem em
El Hierro, nas Canárias. Para cima de 8.5! É uma catástrofe! E foi dado um
alerta de tsunami, em 90 minutos as ondas podem atingir a costa portuguesa…Sem
bateria, a chamada caiu, deixando Ana Maria atónita, com Tomás e Bárbara a
caminho, noutro carro.
Olhando para
o Tejo, a ondulação era forte agora, galgando a margem na Rocha do Conde
Óbidos, invasivo, um abalo fortíssimo fez tombar um candeeiro a seu lado,
abrindo uma racha no solo. Uma sirene do INEM ecoou ao longe, a onda teria
chegado a terra firme. Correu para o lado da estrada, subindo o viaduto da
Infante Santo, em baixo, carros jaziam esmagados pelo desabar de alguns prédios
mais antigos. Ao longe, mastodôntica, uma vaga com mais de seis metros
recortava-se por trás da Ponte sobre o Tejo, o cacilheiro para Porto Brandão em
segundos foi sugado, como casca de noz.
Em pânico,
Ana fugiu para a zona alta, a onda assassina e inesperada engolia já Alcântara
e as Docas e contentores desgovernados entravam pelas ruas, arrastados pela
força das águas. Correu, sem olhar para trás, como muitos outros, apanhados no
local, até que a onda os capturou, furiosa e prepotente. Trezentos anos depois,
a Velha Senhora voltava a Lisboa, invasiva e diluviana. Presa num varandim, a
pasta com a comunicação de Ana Maria ficou ondulando, desfeita, com o powerpoint definitivamente
desactualizado.
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