Está em liça a
questão da reorganização administrativa, agora numa fase de maior visibilidade,
e já em presença dum documento para discussão, a Proposta de Lei n.º 44/XII de
20 de Março. Sob a semântica intenção do” reforço da coesão nacional”, da
“melhoria da prestação dos serviços públicos locais” ou da "optimização da
actividade dos diversos entes autárquicos”, a reforma, na verdade imposta pelo
memorando da troika (a qual se duvida que saiba o que são freguesias e que em 3
semanas tenha ficado a saber muito mais) nasceu torta e sobretudo inquinada
pela ausência duma real e efectiva vontade originária provinda dos interessados
na sua própria reforma, essa sim, o verdadeiro paradigma da administração local
democrática.
Chamando
racionalização à sanha dos cortes cegos, e organização do território a um
critério que trata por igual o que é de si saudavelmente desigual, a proposta
acena com a libertação de recursos financeiros que serão colocados ao serviço
dos cidadãos, alardeando uma suposta optimização da alocação dos recursos
existentes e o reforço das atribuições e competências próprias actualmente
cometidas às freguesias, acompanhado pelo correspondente envelope financeiro,
prometendo uma majoração de 15% da participação no Fundo de Financiamento de
Freguesias (FFF), até ao final do mandato seguinte à fusão aos que sem
discussão acatem o critério preconizado na proposta.
É certo que se
diz salvaguardar a pronúncia dos órgãos autárquicos, sem deixar contudo de
lançar o remoque de que “ a inércia corresponderá a uma demissão face ao
processo de reforma. É pois uma outorga a jeito de canga e não uma auscultação
ou participação verdadeiramente democrática o que esta proposta vem oferecer.
Expressões como “obrigatoriedade” de reorganização administrativa, ou “proximidade”
(quando a provável nova sede da freguesia pode vir a ficar a mais de 20 km),
soam a semânticas, alem de que a solução apresentada para a designação das
freguesias anexadas supõe uma nomenclatura extensa e despida de identidade.
Poder-se-á chamar
“participação” a uma via sacra contra-natura em que os chamados a participar
querem fazê-lo, mas se calhar não nesta direcção?
O concelho de
Sintra, pelo novo projecto, situar-se-á no quadro dos municípios de nível 1
(20000 habitantes por freguesia no lugar urbano e 5000 habitantes nas outras
freguesias), devendo as freguesias com um índice de desenvolvimento económico e
social mais elevado, maior número de habitantes e maior concentração de
equipamentos colectivos ser consideradas, no quadro da prestação de serviços
públicos de proximidade como preferenciais pólos de atracção das freguesias
contíguas, e a sede do município preferencialmente considerada como pólo de
atracção das freguesias que lhe sejam contíguas, independentemente de nestas se
situarem ou não lugares urbanos.
Como município
de nível 1, deverá pois o concelho de Sintra prever a redução, no mínimo, de
55% do número de freguesias cujo território se situe, total ou parcialmente, no
mesmo lugar urbano ou em lugares urbanos sucessivamente contíguos, e de 35% do
número das outras freguesias.
A proposta prevê
que em casos devidamente fundamentados a assembleia municipal possa, no âmbito
da respectiva pronúncia sobre a reorganização administrativa do território das
freguesias, considerar solução diferente da resultante dos parâmetros de
agregação, desde que a mesma não implique uma agregação de freguesias em número
inferior. Liberdade, sim, mas limitada…
E as novas
freguesias, alem de nascerem tortas, nascerão obtusas, isto é, passarão a
designar-se «União das Freguesias», seguida das denominações de todas as
freguesias anteriores que nela se agregarem.
Fala-se em
redução de burocracia e proximidade, e para tanto acena-se com nova cenoura, de
novo uma outorga e não um direito reclamado pela legitimidade originária dos
fregueses: a criação dum designado conselho de freguesia, a funcionar junto da
assembleia de freguesia e composto por cidadãos residentes em cada um dos
territórios das freguesias agregadas, designados, em igual número, pela
assembleia de freguesia. Não se descortina o que trará de novo face às
assembleias de freguesia já existentes, e duvida-se mesmo que em aglomerados
mais pequenos haja pessoas interessadas em deslocar-se um bom par de
quilómetros para participar num órgão consultivo, duplicador da assembleia de
freguesia e meramente ornamental.
Quanto às novas
competências das freguesias, o projecto remete para lei ordinária posterior, na
prática uma terceira cenoura (para melhor preparar o “doente” para a segunda
dose de “racionalização” e “proximidade”…) prometendo uma recompensa de mais
15% de reforço nas verbas. Mas - há sempre um mas…- exceptuam-se as freguesias
cuja agregação não resulte de pronúncia da assembleia municipal conforme com os
princípios e parâmetros de agregação previstos na lei,
casos em que não haverá lugar a qualquer aumento na participação no FFF.
Os 15%, serão só para os bem comportados, portanto. E a assembleia municipal,
só após consulta ou proposta da câmara municipal, (terá de esperar por uma
proposta da Câmara, que dela emana, e não exercerá ab initio um direito próprio
enquanto principal órgão da autarquia)) deliberará sobre a reorganização
administrativa do território das freguesias, considerando os princípios e os
parâmetros de agregação definidos na lei.
A pronúncia da
assembleia municipal deverá conter a identificação das freguesias consideradas
como situadas em lugar urbano, o número de freguesias, a denominação das
freguesias, a definição e delimitação dos limites territoriais, a determinação
da localização das sedes das freguesias e uma nota justificativa.
A pronúncia da
assembleia municipal deverá ser entregue à Assembleia da República no prazo
máximo de 90 dias a contar da entrada em vigor do diploma que venha a ser
aprovado, acompanhada, quando emitidos, dos pareceres das assembleias de
freguesia. Senão, a Unidade Técnica para a Reorganização Administrativa do
Território, que funcionará junto da Assembleia da República tratará de
apresentar propostas concretas de reorganização administrativa do território
das freguesias.
Se a assembleia
municipal não promover a agregação de freguesias nos termos da lei, o silêncio
será equiparado para todos os efeitos legais, a ausência de pronúncia, e aí
avançará essa figura tecnocrático-troikiana que é a Unidade Técnica, valiosa
conquista do Estado de Direito democrático pós-resgate...
Esta reforma
atabalhoada mexe com o Portugal profundo, a sua idiossincrasia e a vontade
popular muitas vezes no passado escrita em sangue contra os poderosos, e só um
contrato com as populações de génese democrática pode tornar pacífica uma lei
que a todos contente, por a todos respeitar. De outro modo, está lançado o
alarme social sobre o ponto do memorando da troika mais difícil de fazer
cumprir.
Penalizadas
pelas transferências do OGE, a Lei dos Compromissos, a suspensão de fundos
comunitários, as autarquias estrebucham. S.Martinho, onde os 30 cavaleiros
donatários de Sintra se instalaram depois do foral de 1154, onde os templários
de Gualdim Pais zelaram pela fé, que viu o Chão de Oliva e a Xentra moura, a
judiaria e a alpendrada, o nascimento e a morte de reis, o Lawrence e o Hotel
Nunes, acolheu Ferreira de Castro e escutou Zé Alfredo, não pode ser engolida
por uma mera decisão administrativa que a ignora e avilta.
Independentemente
duma reorganização administrativa que parta das populações e seja subjacente a
um modelo de desenvolvimento partilhado, que não se nega terá de se colocar um
dia destes, é para já dever dos moradores e fregueses de S.Martinho dizerem que
assim não.
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